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A rainha do sertão

                    Desde que o Brasil é Brasil que o curso de Direito está entre os mais valorizados. Foi assim na época do Império quando os nobres mandavam seus filhos para estudar em Coimbra. Foi assim quando surgiram as primeiras universidades na linha abaixo do Equador. Mais de 500 anos se passaram e muita coisa ainda não mudou. O curso ainda é responsável por algumas das profissões mais bem pagas no país, como as carreiras de magistrado, advogado ou procurador. Mais: o perfil dos estudantes ainda lembra as épocas de outrora: pessoas bem-nascidas, de posses e pele alva.

            Na contramão das estatísticas, lá nos anos 1960, a pernambucana Maria Bernadete Figueiroa, natural da cidadezinha interiorana de Água Preta, Zona da Mata Sul do Estado, decidiu que estudaria Direito. “Eu sempre tive um senso muito crítico. Apesar de morar no interior, cidade pequena, atrasada, eu sempre fui muito crítica das injustiças sociais, sabe?”, conta, durante o nosso primeiro dia de conversa.

            A entrevista aconteceu na sala do Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo do Ministério Público de Pernambuco. Cheguei um pouco antes do horário marcado, que foi às duas horas da tarde de uma quarta-feira ensolarada. O MPPE fica no centro do Recife, Rua do Imperador, Bairro de Santo Antônio. A região abriga uma centena de órgãos públicos, consegui identificar algumas secretarias da Prefeitura e um Fórum da Justiça Estadual. Ao redor, policiais militares faziam a segurança.

            Eu tinha duas opções para chegar ao MP: fazer o trajeto até a Rua do Imperador pelo Cais de Santa Rita, banhado pelo Rio Capibaribe, ou então ir pela Avenida Guararapes, na altura da área mais conhecida como Praça do Diario, em menção ao antigo prédio do jornal mais antigo em circulação na América Latina. Dizem que pernambucano é megalomaníaco: tudo é o maior, o melhor ou o mais antigo. Parece que o periódico Diario de Pernambuco aprova essa ideia.

            Resolvi ir pelo Cais. A vista do Capibaribe e a brisa me acompanharam. Sempre que sinto o vento passar lembro-me que valeu a pena ter nascido. Uma caminhada de menos de cinco muitos, que incluiu a volta em duas esquinas, e estava diante do prédio azulado do MPPE. Entrei. As paredes e o piso em tons amarronzados me fizeram pensar que essa é a cor preferida das instituições públicas. Já tive experiências profissionais em alguns órgãos e, definitivamente, marrom é a cor mais quente. Na recepção duas mulheres trabalham. Apresentei-me a uma delas, que ligou para a sala do GT Racismo e logo após autorizou a minha subida. Explicou-me o caminho. A sala fica no 1º andar, fui de escada.

            Chegando lá fui recebida por Maria Eduarda, 20 e poucos anos, estagiária. Em seguida chegou Juliana, servidora pública. Ela explicou que a procuradora Bernadete logo chegaria, já estava no prédio. Foram mais ou menos 20 minutos de espera, tempo suficiente para observar a pequena sala. De imediato o que me chamou a atenção foram os banners pregados de frente para a porta de entrada. Impossível entrar e não notá-los. Os dois falavam sobre racismo. Em um deles dois blocos de textos: “Racismo. Começa com ofensa. Termina com justiça”. O outro, no mesmo estilo, pedia que o crime fosse denunciado. Enquanto escrevia este parágrafo, lembrei-me de um discurso que Bernadete me diria semanas depois: “Agora é porque, Jaqueline, não é todo mundo que tem disposição, coragem, raça de denunciar, assumir e dizer assim ‘isso aconteceu comigo’. Tem gente que só vai no último caso. Por isso que é tão grave quando uma pessoa chega com uma denúncia de racismo na delegacia e a delegacia não dá a menor importância”.

            Sentada de frente ao birô de madeira onde trabalha Bernadete, notei que atrás de mim havia uma estante daquelas de biblioteca ou livraria. Eram muitos exemplares. Não sei se por coincidência ou destino meus olhos primeiro enxergaram o livro-reportagem Nabuco em pretos e brancos, de autoria da jornalista Fabiana Moraes. Há um ou dois meses fui à casa de Fabiana e adquiri o meu exemplar da publicação, que também traz uma série de perfis com personagens negros que atuam em profissões privilegiadas. Além disso, são perfilados personagens brancos que estão às margens da sociedade. Será que a posição social é capaz de embranquecer ou enegrecer alguém?

            Na mesma estante está uma série de livros produzida pela Unesco e pelo Ministério da Educação sobre a História da África. Contei VIII volumes. Têm o estilo daquelas enciclopédias tipo Barsa: centenas de páginas envoltas em uma capa dura de única cor. Lembro que na época de colégio, a biblioteca só permita o uso da Barsa para consulta. Sem a internet ainda ter tanto domínio, alguns dos meus trabalhos escolares foram pesquisados nela. A série sobre a África me fez pensar que há muito material para ser abordado conforme a Lei 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Em outras palavras, as escolas precisam ensinar às nossas crianças sobre a cultura africana. Algo que eu dificilmente estudei.

            Tirando-me das minhas reflexões, a procuradora de justiça Maria Bernadete Figueiroa chega e nos saúda com um “boa-tarde” firme e carinhoso. Pede desculpa pelo atraso, cumprimenta-me com um aperto de mão, coloca o celular para carregar. Ela tem 65 anos, os cabelos curtos e cacheados de um ruivo acaju, sobrancelha bem marcada, maquiagem nos olhos, batom alaranjado, unhas bem pintadas. Usa um vestido com estampa em listras assimétricas e coloridas, brincos pequenos, relógio e anéis nas mãos, colar com um pingente em forma de cruz. Tudo dourado.

 

A Rainha do Sertão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

            “Eu sempre soube que quis fazer Direito, nunca tive dúvida, a minha dificuldade era ter essa oportunidade. Porque o interior era longe, naquela época era tudo mais difícil”. A fala rememora o início dos desejos de menina, sempre muito estudiosa e primeira da classe. Teve de sair do interior para estudar na capital. Foi aprovada na Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco, onde cursou o primeiro e o último ano. Os semestres do meio foram cursados na Federal da Bahia. Bernadete havia passado em um concurso público para um banco instalado em Salvador e precisou pedir transferência da universidade. “Foi uma época muito rica também, eu aprendi muito, tive excelentes mestres lá. E depois o último ano eu voltei pra fazer em Recife porque foi quando eu já podia pedir transferência pra voltar.”.

            Por causa da adaptação curricular foi preciso pagar novas disciplinas na UFPE e assim passar mais tempo no curso, que já havia sido atrasado em um semestre devido à transferência para Salvador. “Embora fossem federais, eram diferentes os currículos. Aí eu perdi um pouco de tempo por causa disso”. Ela terminou a graduação aos 27 anos de idade. Logo em seguida foi aprovada no mestrado, cursou todo o período, concluiu as monografias necessárias mas não conseguiu apresentar o trabalho: “No final acabou sendo considerado uma pós-graduação, mas não chegou a ser considerado um mestrado porque eu não apresentei a minha tese porque teve uma série de problemas de ordem pessoal que me impediram”.

            Apesar de ter trabalhando em banco durante 10 anos, Bernadete sempre soube que queria fazer carreira em profissões específicas da área jurídica. Na época, para ser aprovado em um desses concursos, o candidato precisava ter carteira da Ordem dos Advogados do Brasil e alguns anos de experiência. “Se eu não me engano parece que eram quatro anos. Aí eu não tinha, então eu comecei a advogar. Eu fui acumulando essas experiências pra poder conseguir entrar em concurso público”, conta e complementa: “Eu tinha que me formar, tirar OAB, tudo isso eu fiz”. Ela prestou concurso para alguns cargos, entre eles procurador da Prefeitura e juiz do Trabalho, antes de ingressar no MPPE. “Eu tenho certeza absoluta que o meu caminho era o Ministério Público, eu tava procurando isso até que chegou a oportunidade de eu fazer. Eu já tinha o quê? Cinco anos de formada quando eu passei no concurso, tava terminando o mestrado e foi assim muito legal ter passado porque eu me identifico completamente, de alma e coração, com o Ministério Público. É muito bom fazer o que a gente gosta, né?”. É, é sim.

            Logo que entrou no MP, assumiu uma cidade do sertão chamada Inajá. Era uma comarca de difícil acesso. Naquela época, conta, quando queriam desejar o mal a alguém diziam que desejavam que a pessoa fosse para Inajá. “Porque não é nem que a cidade seja ruim, a cidade é muito boa, é o acesso que na época era muito ruim. E não tinha comunicação porque isso foi de 84”. Pega a agenda para confirmar a data: era mesmo 1984. Bernadete ficou 1 ano e 8 meses em Inajá, acumulando, inclusive, a promotoria de outros municípios da região. “Teve uma época que eu era 'a rainha do sertão', tinha quatro promotorias”. Além de Inajá, ela acumulava as de Ibimirim, Tacaratu e Petrolândia. Houve ainda um período em que também respondeu pela promotoria de Floresta. “Teve uma época que eu tinha cinco promotorias, uma loucura né? Não dava nem tempo de ir em todas as cidades toda semana porque as cidades são distantes uma das outras no sertão. Então era uma coisa muito difícil. Naquela época o Ministério Público não era o que é hoje, não tinha as condições de funcionamento que tem hoje”.

          A convivência com a população local foi bastante engrandecedora. “Foi um período riquíssimo, de muito aprendizado, que eu convivi muito com o povo de Inajá, um povo sertanejo, um povo muito bom, muito carente de tudo, mas muito solícito, muito sincero. Foi uma convivência muito rica pra mim porque o povo sertanejo, muito de perto, vi como é que é a vida, as dificuldades, as carências. Foi muito importante”. Talvez Bernadete tenha percebido o que Euclides da Cunha já dizia: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

            De Inajá foi removida para a circunscrição de Vitória, onde permaneceu por mais de quatro anos e integrou a Vara do Júri. Foi uma cidade difícil, com muita demanda tanto na parte criminal quanto nas eleitoral e cível. “Eu digo assim: eu aprendi a ser promotora pra valer em Vitória”. Saiu de lá promovida à promotora de 2ª Entrância, assumindo a comarca de Ipojuca. Por eu já ter feito estágio em tribunal, tenho certa noção das hierarquias que envolvem o Judiciário. No entanto, o termo “Entrância” era novo para mim.

            Com um discurso bastante pedagógico, Bernadete se dispôs: “Eu vou lhe explicar”. E explicou: “A categoria de promotores é dividida em entrâncias. As 1ª Entrâncias são as promotorias mais distantes, menores, que é pra pessoa ir se familiarizando. Você entra na 1ª Entrância, aí depois de algum tempo você é promovido pra 2ª Entrância”. Essa, por sua vez, corresponde a cidades maiores do interior. Já a 3ª Entrância é a capital do Estado.

            A explicação a fez refletir sobre a mudança no tempo necessário para a promoção. “Eu saí da 1ª pra 2ª com quase seis anos de Ministério Público, hoje em dia o pessoal sai muito mais cedo. A carreira é mais rápida, porque tem muito mais promotor, muito mais promotoria também”. Com seis meses de Ipojuca, foi chamada para trabalhar no Júri da Capital, porque já tinha a experiência de Vitória. “Eu fui a segunda mulher a participar do Júri de Recife”, destaca, orgulhosa. Tentando lembrar o ano em que ingressou no Júri da Capital, Maria Bernadete recorda que foi um pouco antes de iniciar os trabalhos com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que foi lançado em 1990.

            Assim como todos os profissionais de Direito que conheço, a procuradora de justiça sente necessidade em datar a lei. E em numerá-la também. Por isso pede que Juliana pesquise na internet se o Estatuto é mesmo de 90. Novamente, assim como quando conferiu o ano em que esteve em Inajá, acertou a data. Tem boa memória. Ela também confirmou o número do Estatuto: 8.069. A situação me fez lembrar uma entrevista que fiz com um advogado desportivo, que disse: “Lei não tem nome, tem número”. De certa forma acho que os jornalistas têm algo em comum com os juristas: também sentem necessidade de datar. Mas não a lei, os fatos. Pra gente, as leis ainda podem ter nome, estão aí a Maria da Penha, a Carolina Dieckmann, a Pelé.

 

Em prol de crianças e mulheres

            “Então o Estatuto foi uma revolução porque o Ministério Público não sabia como lidar com isso, nem a magistratura, a polícia”. Foram mais de três anos trabalhando na central de triagem onde eram recebidos os adolescentes que tinham cometido infração. A convite do então coordenador da Infância, Bernadete, que sempre se envolveu em causas sociais, e outros colegas do MP, participaram de capacitações e treinamentos a fim de implementar a nova lei. O principal obstáculo era promover a mudança de pensamento. “A perspectiva do Estatuto, ela é totalmente diferente do Código do Menor. O Código do Menor tratava o adolescente como se ele fosse um objeto. Ele não tinha direito de se defender, ele não tinha defesa, ele não tinha nada. Então foi uma dificuldade mudar a cabeça das pessoas pra lidar com o Estatuto. Tirar uma pessoa da condição de objeto pra passar a ser uma condição de sujeito de direito, entendesse? Isso foi a inversão que o Estatuto fez, foi uma coisa muito importante, uma política muito avançada que até agora não se conseguiu consolidar”.

            Ao mesmo tempo em que lutava pelos direitos de crianças e adolescentes, Maria Bernadete Figueiroa mantinha seu envolvimento com o Movimento de Mulheres. “Eu era muito metida em negócio de violência doméstica porque eu fui convidada pra ser presidente da Associação das Mulheres de Carreira Jurídica”. Ela ficou à frente da ABMCJ por aproximadamente três anos, mas já estava no grupo há seis ou sete. A perspectiva era trabalhar o empoderamento das mulheres para uma atuação de maior protagonismo.

            Os trabalhos na Associação a fizeram enxergar o racismo com mais clareza, inclusive dentro da própria instituição. “Eu percebia, por exemplo, que o feminismo, que eu já era uma feminista sem nem saber direito, mas eu comecei muito cedo, era um feminismo branco, porque as mulheres negras não tinham espaço. Nem na ABMCJ não tinha espaço. E eu ficava olhando assim, eu era a única mulher negra quase”. Isso me lembrou da história do neurocientista norte-americano que veio palestrar no Brasil e foi vítima de racismo ao entrar no hotel onde seria realizado o evento. No começo da palestra ele indagou aos cientistas presentes “Olhem para o lado, vejam quantos negros estão aqui. Vocês deviam ter vergonha”. Não havia nenhum.

            Foi a partir dessa percepção que Bernadete começou a notar que outros grupos de mulheres estavam sendo formados. Grupos de mulheres negras, que discutiam questões das mulheres negras. “Aí foi quando eu vim perceber esse viés racial com clareza, foi no Movimento de Mulheres, quando eu vi que tinham outras mulheres que tinham que se organizar”. Foi nesse momento que ela conheceu a Geledés - Instituto da Mulher Negra, organização política criada em abril de 1988, que tem por missão institucional a luta contra o racismo e o sexismo e a valorização e promoção das mulheres negras. Eu tive a honra de ver um artigo meu publicado no site da instituição, ainda mais durante as celebrações do mês da Consciência Negra.

            A conversa segue e ela reflete sobre a resistência às mulheres que acusavam o feminismo branco. “Eram mulheres de altíssimo nível, superpreparadas, mulheres fantásticas, sabe? E elas não eram muito aceitas”. Continuando, explica, “Ninguém dizia, ninguém falava, porque o racismo é assim, tá?”, conta, meio que me orientando, “Ninguém fala, mas você vê que existe”.

 

É duro ser negro nesse país

            “Olhe, deixa eu dizer uma coisa a você, o racismo complica tudo. Qualquer atitude que a pessoa quer ter na vida, pra chegar em qualquer lugar, a pessoa negra, e a mulher negra mais ainda, porque ser mulher já é uma vulnerabilidade diante do ser macho nos países ocidentais, não é verdade? Então ser mulher e ser negra são dois aspectos de vulnerabilidade nesse sentido de que é tudo mais difícil. É mais difícil pra você se dar bem na escola. É mais difícil você vencer a adversidade da discriminação que você passa na escola. É preciso que você seja resiliente pra você superar isso. É preciso que você tenha um foco muito grande no que você quer porque senão você sai pelo meio do caminho. Porque é duro ser negro nesse país, tá entendendo? Então a discriminação ela tá presente desde o começo, desde a hora que a gente nasce, até a hora que a gente morre. E cada vez que a gente quer sair desse lugar, você encontra sempre resistência, de todas as formas, entendeu? Então se você é a melhor da classe, se você é negra, é porque você é a ‘neguinha metida a besta’, amostrada, quer saber mais que os outros, não é assim? Não é assim?”

            Eu não tinha como deixar de reproduzir por completo essa reflexão de Bernadete. E também não pude deixar de perceber a sua necessidade em ter seu pensamento validado. Durante toda a conversa são muitos “não é verdade?”, “tá entendendo?”, “não é assim?”. É verdade, a gente entende, é assim. Era como se ela tivesse a impressão de estar falando o óbvio: todo mundo sabe que o racismo e o machismo existem. E é comum que eles comecem a ser sentidos ainda na infância. “‘Aquela neguinha é toda metida’, escutei tanto isso, comigo e com as outras. E eu nem era uma neguinha metida porque, modéstia a parte, eu era muito estudiosa, mas eu era uma pessoa muito humilde”.

            Maria Bernadete vem de uma família com muitos irmãos. “Apenas 10”, brincou. Teve uma infância normal de criança pobre do interior. “Mas uma pobre que sempre tinha as condições normais de vida, como a maioria das crianças com quem convivi, nunca senti, assim, nunca faltou o essencial”. Faz questão de ressaltar que não tem trauma quanto à vida de criança, mas que sempre sentiu presente o preconceito. “Eu tô falando de infância, mas discriminação sempre tive, sempre fui discriminada, em todo canto, tá?” Na escola, quando adolescente, desejava carregar a bandeira da instituição nos desfiles de 7 de Setembro ou de aniversário da cidade. Sempre foi preterida. “Eu queria, pelo menos, carregar a bandeira da escola. Ninguém nunca deixou. Só as meninas brancas que carregavam a bandeira da escola. A bandeira do Brasil, então, nem pensar, tá entendendo? Então aquilo vai lhe dando uma tristeza ‘poxa, mas eu sou a primeira da classe’. Aí você pensa assim: e por que é que eu não posso, né?”

            A menina inteligente despertava a atenção dos professores, chegando, inclusive, a ser convidada para dar aula às crianças menores quando algum deles faltava. Naquela época, havia exame de admissão ao ginásio e Bernadete, então na 5ª série, ensinava aos alunos da 3ª e da 4ª. Isso não impediu os educadores de fazerem vista grossa quando a menina era vítima das brincadeiras dos colegas. Talvez porque pensassem não ser nada de mais. Mas era. “Na primeira briga que tem os colegas brancos lhe xingavam logo de negro, de cabelo de Bombril, de não sei o quê. Então isso aí é automático, no racismo é assim, mas as professoras nunca ligaram pra isso. Quem achar que aquilo não era nada demais é porque ninguém nem prestava atenção”, desabafa. É como sempre digo: Quem sente é a criança que está ouvindo. Também já fui criança, também já ouvi “brincadeiras”.

            Nos tempos de escola de Bernadete, e nem mesmo nos meus, as consequências do bullying ainda não eram estudadas. O termo bullying nem mesmo existia. “Eu nem sabia que era bullying que eu passava. Quem sofre bullying, 90% são as crianças negras. Eu me lembro como hoje que comiam o meu lanche, ainda em empurravam na hora do recreio pra tomar meu lanche, eu caia. Um dia eu levei uma queda, eu fiquei uma semana sem frequentar a escola por conta dessa queda. E ninguém se incomodava”.

 

O enfrentamento ao racismo

            O GT Racismo do MPPE foi criado em 2002, no dia 10 de dezembro, Dia Mundial dos Direitos Humanos. Quando perguntei a procuradora Bernadete como ela havia ingressado no grupo, ela me corrigiu: “Eu não ingressei, eu criei o GT Racismo”. O Brasil havia sido um dos países signatários da Conferência de Durban contra o Racismo, realizada na África do Sul, em 2001, mas não vinha desenvolvendo políticas de combate aos crimes raciais. “Quando teve a Conferência de Durban, as instituições brasileiras se comprometeram de mudar a prática, a legislação, etc. Só que ninguém tava se mexendo e quando chegava uma demanda continuava sendo tratada do mesmo jeito. Então a gente começou a discutir a necessidade de o Ministério Público criar um grupo de discussão, porque dentro do Ministério Público não existia racismo, ninguém achava nem que existia, porque a maior parte de nós somos todos brancos aqui dentro, os empoderados e as empoderadas”, comenta com visível ironia. Lembrando que possui consulta marcada no médico, avisa-me: “Eu preciso ir-me embora, visse? Agora que eu tô vendo, por causa da hora”.

            Nosso segundo encontro aconteceu duas semanas depois, numa tarde de segunda-feira, no mesmo horário e local da primeira entrevista. “Eu já falei pra você, né, que tinha passado pelo Movimento de Mulheres e isso me dava uma visão mais crítica da própria atuação institucional do Ministério Público porque eu achava que a gente tava muito distanciado dessa demanda de combater o racismo”. A convite do então procurador-geral, Maria Bernadete participou de uma reunião sobre raça e gênero promovida na Bahia pelo Programa das Nações Unidas de Combate ao Racismo Institucional. “Era uma coisa totalmente nova discutir racismo. Racismo Institucional foi um conceito que foi trazido por esse pessoal do PNUD, porque antes o Brasil não falava essa palavra”.

            Quando voltou da reunião, Bernadete propôs a criação do GT Racismo e procurou colegas que tinham o perfil de cidadania e trabalhavam na área de Direitos Humanos. “Reuni uns cinco colegas naquela época e a gente criou o grupo com muito compromisso desde o começo. Hoje em dia são 12 membros e servidores, mas na época eram cinco promotores e eu de procuradora de justiça”. Em maio de 2003, poucos meses após a criação, o GT promoveu uma grande audiência pública convocando Movimento Negro de Pernambuco, instituições do sistema de justiça, segurança, OAB, polícia e representantes de terreiro. “Foi assim um momento ímpar em termo de diálogo, foi uma coisa fantástica, teve gente que ficou sabendo de coisas que não sabia que existia”. Na pauta, estavam os assuntos mais gritantes da época: a abordagem policial a pessoas negras, a violência em terreiros, a saúde da população negra e, sobretudo, a implementação da Lei 10.639, que combate o racismo na educação. “A Lei era de janeiro de 2003 e a gente tava em maio de 2003, quer dizer, logo em seguida a gente foi pra luta pra implementar as coisas. Então a gente já tinha a Lei e o Movimento Negro já fazendo essa demanda de implementação da Lei como sendo uma política afirmativa básica para a extinção do racismo. E até hoje a gente vive nessa luta, caminhando com essa dificuldade de implementar a Lei”. É, parece que as demandas não mudaram tanto.

            Na linha de frente do combate à discriminação, Maria Bernadete tem uma atividade certa: palestrar. Quando questionada sobre ao assunto, ela acha graça: “Ela perguntou se eu dou palestra”, comenta aos risos. “É o que eu vivo fazendo né, Juliana? Eu dou palestra até sonhando”. Juliana confirma: “Ela precisa que o dia tenha 48 horas”.

            A rotina puxada já vem de longe, mas é possível enxergar que a paixão pelo trabalho e a luta por uma sociedade mais justa mantêm o desejo de fazer sempre mais. Em 2004, na primeira vez que levou o tema Racismo Institucional para um Congresso do Ministério Público, foi questionada por um colega de MP: “Ave Maria, Bernadete. Que negraria é aquela? Você está enegrecendo o Congresso”. A negraria eram os palestrantes, todos doutores ou pós-doutores. “Então eu disse ao colega: Olha colega, essas pessoas que tão escurecendo são os palestrantes. Se você quer saber do que se trata, vá assistir”. Terminado o congresso, o promotor pediu desculpas e afirmou que a única palestra interessante no evento havia sido aquela. “Então hoje em dia aqui ninguém estranha mais. Agora, aqui no Ministério Público de Pernambuco, eu costumo dizer que nós somos os Déspotas Esclarecidos”, sorri, fazendo-me sorrir também. “Porque a gente já sabe do que se trata, se fizer é por pura maldade. Mas a gente já sabe que isso dói, que isso incomoda, que isso é crime, que isso fere, que isso é violação de direito, que isso cabe indenização, etc., etc.”. 

 

Lugar de negro, lugar de branco

            Como já disse, fiz estágio em tribunal. Convivi com juízes e desembargadores. Posso afirmar, é uma raridade encontrar uma pessoa negra nesses cargos. Comentei com Bernadete essa observação. Comentei também que liguei para todos os tribunais do Estado em busca de uma magistrada negra e a resposta era quase sempre padrão: “Infelizmente, não temos magistrada com esse perfil”. Quando encontrei alguém, ela não se sentiu à vontade para conceder entrevista. Acho que a gente pode contar nos dedos a quantidade de juízes negros em Pernambuco. “Não tem, querida, não tem. Eu fiz uma palestra no começo do ano pros novos juízes, com 65 juízes. Não tinha um. E eu perguntei a eles, não gostaram claro, porque ninguém gosta dessas perguntas, se era normal isso, se eles achavam que era tão natural que só os brancos tivessem inteligência pra ser juiz. E o que é que tá acontecendo com o negro? Será que todo negro é burro e todo branco é inteligente?”. E continua: “Então a questão do racismo é essa na-tu-ra-li-za-ção do lugar da pessoa negra”, fala, pausadamente. “No imaginário social, o normal é que a pessoa negra seja o quê, na terceirizada, seja segurança, no máximo. E olha se for negão grande, porque pra segurança não pode ser qualquer negro não, né?” E reforça: “Porque o racismo é essa naturalização, como eu digo, de que aquele lugar é do branco e esse lugar é do negro. Daí a grande grita da sociedade quando o negro quer entrar na universidade, porque universidade não é lugar de negro, tá, é lugar de povo branco no Brasil”.

          Foi inevitável falar das cotas. “Claro que eu sou a favor das cotas. Lógico que eu sou. Eu e todo mundo que é raciocinado do ponto de vista das desigualdades desse país. Porque as cotas não são nada mais do que uma política temporária, afirmativa. Que a imprensa não fala que é temporária também, parece que vai ser pelo resto da vida, que é pra criar esse, sabe, (esmurra a mão em sinal de embate), esse conflito com a sociedade instituída, incluída”. Foi a segunda vez que ela falou da imprensa, da minha imprensa, como gostou de frisar. É verdade, às vezes as notícias não informam como e o quê deveriam.

            Como são comuns argumentos no estilo “Tá tirando o lugar do meu filho pra entrar na faculdade” ou “Eu gastei tanto no colégio tal e agora tenho que abrir lugar”, Bernadete esclarece: “Não tá abrindo lugar pra ninguém, você apenas está dando minimamente condições pra uma pessoa que teve um percurso totalmente adverso. Você não pode exigir dele a mesma performance que você exige das pessoas que estudam nos colégios que tem psicóloga, assistente social, massagista, psicopedagogo e não sei o quê mais, né verdade? Então, é outra história, você teve um contexto familiar favorável, você tem uma estrutura cultural que você nasceu. É isso que Pierre Bourdieu chama de capital social. Você nasce num espaço que lhe permite uma desenvoltura totalmente diferente do outro que nasceu lá no Alto José do Pinho”. Ao falar em Pierre Bourdieu, imediatamente meu pensamento se voltou para as aulas de Teoria da Comunicação ministradas no curso de Jornalismo da UFPE. Acredito que todos que estudam essa área sentiriam a mesma epifania. Bernadete continua: “Então é esse capital social que a população negra não tem. É raro você encontrar uma pessoa negra que tenha essa condição, né, que nasceu no lugar. E, mesmo que tenha, está nele a marca da cor, porque na hora que ele chegar no lugar que ninguém souber que ele é rico, ele é tratado como negro, concorda? Não há perigo de não ser”.

 

Eu sou uma pessoa que gosto muito da vida

            Imagine a situação, você é coordenador de uma equipe nacional e toda vez que chega para trabalhar tem que se identificar na portaria da instituição. Logo depois, chega sua colega de trabalho. Ela pode entrar direto. É mais ou menos isso que acontece com Bernadete nas reuniões mensais em Brasília. “É como se primeiro eu tivesse que dizer quem eu sou pra poder ser bem tratada. Já a branca não precisa, porque você já supõe que ela é autoridade. Porque o racismo é isso, é o lugar. Não pode ser uma pessoa negra que está naquele lugar, então, se é negro, não pode ser autoridade, você tá entendendo? É essa ideologia de desigualar o outro pela cor da pele, isso é o racismo. Então eu já pressuponho que você não pode tá num lugar, num espaço de poder, de destaque”.

            Foram muitas as definições de racismo expostas pela procuradora, todas elas verdadeiras. Das cinco personagens desta série de perfis, Bernadete é a que tem a pele mais clara. Talvez até a que mais se assemelhe a minha. Acho intrigante essa percepção de que somos morenos-claros, morenos-escuros, pardos. Como disse a estudante de Odontologia Carolina Lemos: “São 50 Tons de Negro”. Já ouvi várias vezes que negra é a raça e preta é a cor. Mas qual é a cor da raça branca? Ou o inverso, qual é a raça da cor? “Porque pensa que nós somos uma grande democracia racial, todo mundo feliz, todo mundo moreno e feliz. É assim? Aonde é que estão os negros? Aonde é que estão os brancos? Que democracia é essa que tá super-representada na pobreza e na miséria e sub-representada pelos povos negros nos espaços de poder? Então é uma desigualdade total. A democracia pende todinha pra um lado, né, que é o lado dos incluídos, e a metade desse país tá de fora”.

            O pai de Bernadete tem a pele mais clara que a dela. “Meu pai, ele se acha branco, mas ele não é. Inclusive ele me chamava a 'neguinha', num sei o quê, mas no carinhoso né, claro. Mas esse carinhoso é porque ele acha pela minha cor, que eu sou negra e ele branco, só que não é, né, porque ele tem todas as características das pessoas negras”. Comigo foi o contrário, quando nasci, costumavam falar “nasceu a branca”. Cresci ouvindo isso. Quando contei essa história a Bernadete, logo após ela pedir desculpa por precisar atender uma ligação, ela fez uma reflexão que eu nunca havia imaginado. “E no final das contas ficam felizes porque nasceu uma mais clarinha, porque vai sofrer menos. Ninguém diz, mas no imaginário das pessoas ‘ah, essa tá mais protegida’. O povo não fala não, sabe como é Jaqueline, mas é porque assim, porque o racismo ele também interfere no outro”. Caçula de quatro irmãos, duas mulheres e um homem, os três com a pele mais escura que a minha, ainda não tinha pensado por esse viés.

            Os dois dias de conversa com a procuradora Maria Bernadete Figueiroa me fizeram mais uma vez enxergar a importância de lutar por um país mais igualitário. Mas também de prezar pelas relações afetivas. Ela tem a agenda concorrida, sobra pouco tempo para aproveitar com a família e amigos, mas faz questão de estar sempre presente. É assim com a filha de 23 anos. É assim com os amigos que costuma receber em sua casa, na beira-mar de Olinda. “Eu sou uma pessoa que gosto muito da vida, de curtir os amigos, gosto de tá junto com a família. Meu fim de semana eu tenho uma casinha em Gravatá, gosto de ir pra lá também. Lá eu descanso, eu descarrego as minhas baterias, sabe? Gosto de receber pessoas amigas na minha casa, pra um jantar, tomar um vinho. Eu gosto de tudo isso”, conta, com a voz serena e calma. “Tudo de bom que existe, eu gosto. Meu tempo é que tá mais restrito, mas eu não abro mão de arrumar um tempo pra fazer essas coisas que eu gosto. E, sobretudo, estar junto dos amigos”. Ao final da conversa, ganho um exemplar do livro comemorativo aos 10 anos de atuação do GT Racismo do MPPE. Foi escrito por Fabiana Moraes, lá vem a coincidência ou o destino outra vez. Na despedida, Maria Bernadete pede para me dar um abraço, diz que se orgulha ao ver jovens engajados e que dentro em breve teremos uma jornalista comprometida.

 

Amém!

 

"Eu percebia que o feminismo era um feminismo branco, porque as mulheres negras não tinham espaço."

"A questão do racismo é essa naturalização do lugar da pessoa negra. De que aquele lugar é do branco e esse lugar é do negro. Daí a grande grita da sociedade quando o negro quer entrar na universidade, porque universidade não é lugar de negro,  é lugar de povo branco no Brasil."

 

Bernadete Figueiroa, procuradora de Justiça do MPPE

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