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Jaleco branco, pele negra

Foram mais de quatro anos estudando na Universidade Federal de Pernambuco e de repente eu me dei conta que não a conhecia de fato.  Sempre fiz o circuito próximo ao Centro de Artes e Comunicação, onde é localizado o curso de Jornalismo, mas não costumava frequentar os arredores dos cursos de Saúde.  A universidade, como sempre costumo dizer, é um mundo, não à toa recebe o nome de Cidade Universitária. Tem inclusive uma prefeitura e uma linha de ônibus circular. São hectares e hectares destinados aos mais de 70 cursos do campus Recife, incluindo Odontologia, ministrado no Centro de Ciências da Saúde. É lá o meu destino. Vou encontrar a estudante e futura cirurgiã-dentista Carolina Lemos, 27 anos.

 

            Carol e eu nos conhecemos de um jeito moderno, ou melhor, contemporâneo. Estava em busca de uma personagem para esta série de perfis. Foi o amigo de uma amiga que indicou: “Procura no grupo ‘Dentistas de Pernambuco’ no Facebook”. Alguns minutos de pesquisa para comprovar de uma forma não tão empírica que, sim, a maior parte dos profissionais de Odontologia é branca. No meio de tantos perfis, um me chamou a atenção, uma moça com um sorriso do tamanho do céu e com os cachos do cabelo pedindo pra voar. Na sua página pessoal, encantei-me com fotografias do projeto “Enegrecendo PE”.

               Marcamos a entrevista para esta manhã de terça-feira e estou aqui, entrando pela primeira vez no Centro de Saúde e tendo a oportunidade de enxergar uma outra UFPE. As calçadas da parada de ônibus são iguais às de toda a extensão da universidade: rodeadas de barraquinhas que vendem salgados e sucos e doces e água mineral e todos os outros mantimentos de estudantes. Passada a catraca giratória, já no interior do campus, vejo um prédio com a fachada toda em cerâmica, parecendo um desses empresariais luxuosos. É vinculado a alguma atividade de Medicina. É bem diferente dos centros da área de humanas.

            Alguns passos e logo encontrei o prédio que abriga o curso de Odontologia. As paredes de um verde claro fazem harmonia com as árvores da área de convivência. Identifico alguns grupos de estudantes com conversas paralelas e, à direita da porta de entrada, sentada com a cabeça baixa e olhos colados na tela do celular está Carol. Cabelo preso, calça jeans, camisa cinza, percata rasteira. Apresento-me e logo vem a surpresa: “Eu te conheço”. “De onde?”, questiono. Alguns segundos e descobrimos que moramos no mesmo bairro e já frequentamos a mesma academia. É, o mundo é mesmo pequeno. Ou, como é comum dizermos na capital pernambucana, “Recife é um ovo”.

            Entramos no prédio e nos acomodamos no centro de uma fila de cinco cadeiras localizada em um dos corredores. Carol é comunicativa, fala com voz e com gestos. Acho que as idades próximas, além dos fatores recém-descobertos, fizeram a entrevista, na verdade, se transformar numa conversa de velhas amigas. Isso foi bom.

 

O curso, início e fim

            Uma criança usa por quase 11 anos aparelho nos dentes, que eram bem “trash”. Ela começa a perceber a mudança e a melhora. Fica muito feliz com o resultado e decide “é isso que eu vou fazer”. Foi assim que Carol, que sempre se imaginou na área de exatas, resolveu cursar Odontologia. Pegou emprestado o sonho da irmã, Isabelle, que, depois de um trauma em uma consulta, trocou o desejo de ser dentista pelo de ser advogada. Hoje estuda Direito na UFPE. Na universidade ainda estuda o caçula da família, Marquinho. Faz cinema, meu colega de centro de comunicação.

            Carol está no 7º período do curso, a formatura é ano que vem. Ela já avisou a mãe “Meu cabelo vai deste tamanho”, abre as mãos, enfatizando a potência do black power. As madeixas viraram motivo de discussão depois que ela e a irmã decidiram não mais alisar o cabelo. Antecipando o que deve acontecer no Baile, ela imagina “Vai ser um choque”.

            A turma de Carol é majoritariamente branca, são quatro alunos negros num universo de quase 50 estudantes. E há quem pregue que as oportunidades são iguais. “Sempre me perguntam se entrei por cota. Eu passei em vestibular normal. E a minha amiga que entrou por cota, branquinha, de olho azul, ninguém pergunta. Eu só fiquei sabendo porque ela falou”, desabafa, acrescentando que as cotas raciais são importantes para reparar uma dívida histórica em relação à educação mas que não funcionam sozinhas. “Eu acho que, na educação, primeiro a gente consegue a base. E quando a gente entra aqui não tem apoio nenhum. Mesmo que você venha de escola pública, conseguir algum recurso na faculdade é uma burocracia do cacete pra eles darem pra você”.

            O vestido com tema africano e a música “bombástica” de entrada compõem, juntamente com o cabelo black, o tripé da formatura. Os dois primeiros foram planejados durante a entrevista. “Caramba, tu me deu uma ideia agora, podia fazer um vestido meio africano”. E analisa, meio em tom de brincadeira: “Minha mãe vai chiar, porque minha mãe é dessas.” Carol tem uma família que reflete a miscigenação inerente aos brasileiros. Mãe branca, pai negro. “Já tô vendo na minha formatura, a família do meu pai toda negra, aquela galera todinha. Tu tem noção?”, questiona, lembrando da formatura de Medicina da prima: “Só tinha branco, branco, branco. Eu não vi um formando negro”.

 

Porra, eu tô aqui

            A fala natural, marcada por expressões coloquiais do dia a dia, faz parte da composição de Carol. Foi assim que ela resumiu o sentido da afirmação que pretende impor no baile de formatura “Porra, eu tô aqui”. É uma daquelas frases que te fazem pensar e refletir. É como se um certo sentimento de invisibilidade fosse quebrado.

            A ata de estudantes quase totalmente branca não é exclusiva dos cursos de saúde. Lembro que minhas aulas no curso de administração de outra faculdade pública também eram 90% monocromática. Parece que alguma coisa está errada, como indagou a procuradora de justiça Maria Bernadete: “Será que só os brancos são inteligentes e os negros são todos burros?”. Acho que não.

            Outra semelhança é a hereditariedade. Estudei com muitos filhos de donos de empresas. Carol estuda com muitos filhos de dentistas sócios de clínicas. “Odonto é um curso elitista. É um curso de branco. Tem muita gente aqui que é filhinho de papai, que já tem consultório formado, que tá aqui só pra manter o padrão”.

            Os materiais utilizados pelos estudantes durante as aulas práticas são comprados por eles próprios, ou por sua família, enfim. “No meu curso, ou você tem dinheiro pra fazer ou você não faz. Tô sendo muito sincera”. E continua: “Eu tenho porque o meu pai garças a Deus tem condições, apertando aqui e ali”. Seu Marcos é suboficial da Aeronáutica. A mãe, dona Glauce, é pedagoga mas não atua.

            “Teve período que eu já gastei R$ 3 mil reais”, conta, revoltada. “Vou dizer uma coisa, a caneta que a gente utiliza é em torno de 2 mil reais”. Meio confusa, pergunto, “caneta?”. Percebendo a surpresa ela esclarece em progressão: “A broca, a caneta de rotação, a que faz a zuadinha”. Pronto, a última característica e acabaram-se todas as dúvidas.

            Chegando ao último dos cinco anos de estudos, investimento e dedicação, o planejamento já é certo: “Eu quero fazer uma especialização e pretendo seguir carreira militar”. Carol quer seguir um pouco dos passos do pai. O concurso para ser dentista da Força Aérea é concorrido, mas ela não vê problema em se preparar para as provas: “Odonto você vai viver estudando”. A familiaridade com o Hospital da Aeronáutica vem desde sempre, mas, agora, ela também faz estágio no local.

            Foi lá que a estudante foi surpreendida e reforçou a importância da representatividade. “Um soldado chegou pra mim e disse ‘É a primeira vez que eu vejo uma dentista negra’. Caramba, aquilo dali ele me deu um soco sem saber”. Refletindo sobre a força daquela fala, sobre o fato de o soldado, também negro, ter comentado na rua em que mora sobre “a dentista negra”, Carol sentiu, talvez pela primeira vez, que ela está se tornando referência para outras pessoas. “Eu não posso ser mais uma porque eu vou servir de exemplo pra muita gente. Você serve de exemplo (aponta pra mim e também me faz refletir sobre essa questão), minha irmã serve de exemplo, porque não tem, não tem, não tem, não tem” repete insistentemente como se a ficha de que quase não se vê pessoas negras em profissões valorizadas não parasse de cair.

 

A construção da identidade

            Imagine um grupo de adolescentes em um bailinho de escola. Iluminação baixa, música romântica. Um a um os casais se formam. O menino tira a menina para dançar. Em pouco tempo o primeiro beijo acontece. Parece o cenário de uma daquelas comédias românticas tão exploradas no cinema. Mas e se você não for umas das protagonistas? Se baile após baile, você não for tirada para dançar? Carol ainda lembra dessa época: “Eu sempre era a última a ser escolhida”.

            A baixa autoestima fez a garota não viver os amores no estilo High School. “A minha adolescência eu não fiquei com ninguém, porque eu não me sentia bem e qualquer menino que chegasse em mim eu pensava que ele queria tirar onda, sabe?”. O primeiro beijo foi aos 22 anos, 23 talvez. O tempo passou e as coisas mudaram. “Hoje é muito diferente, mas até eu conseguir isso, até eu consegui me achar bonita...”, conta, deixando no ar a certeza de que é importante se trabalhar a autoestima das nossas meninas.

            Quem pode ajudar nessa trajetória e enfrentar o racismo diário é a família. “Esse assunto não era debatido em casa, eu não fui empoderada pra me achar bonita, pra gostar do meu cabelo, pra gostar da minha cor. Várias vezes eu fiquei pensando, se eu não fosse negra, será que eu teria preconceito?”.

            Uma mudança de visual foi, ainda que inconsciente, o primeiro passo para Carol enxergar a beleza que sempre existiu nela. “Minha amiga tinha um cabelo bem lisão, eu queria ter aquele cabelo e eu sabia que eu não ia ter. Foi quando um belo dia eu fiz ‘porra, eu não sou assim’”. Melhor decisão não poderia haver para a menina que odiava alisamento e escova e só os fazia por pressão familiar. “Eu me vi no cabelo cacheado, eu podia usar meu cabelo solto à vontade, não me incomodava”.

            Nesse momento de transição, foram muitos vídeos e tutoriais assistidos na internet. “Aí é quando você se acha ‘Poxa, eu não tô sozinha. Tem muita gente fazendo isso’”. Aí foi também o começo da reflexão sobre a imposição de determinados padrões. “O comércio, a mídia é muito pesada. A mídia é foda em cima das meninas, em cima das mulheres. Tem que ser assim e acabou. Desde sempre na história a gente tem que ter o padrão branco”.

            As conversas e os debates sobre preconceito que não fizeram parte da infância e da adolescência de Carol chegaram a sua casa por meio da irmã, Isabelle, por quem nutre uma admiração facilmente perceptível. Em pouco mais de uma hora de conversa, foram, no mínimo, seis menções à irmã, cada uma delas com uma vibração e um orgulho que qualquer um se sentiria lisonjeado. Isabelle faz parte do Movimento Zoada, movimento estudantil de esquerda da Faculdade de Direito da UFPE, que tem na pauta assuntos relacionados às chamadas minorias. “Minha irmã começou a trazer muita informação para mim, tipo, em questão racial, em questão de preconceito, em questão LGBT, em questão de outros segmentos da população. Ela comentava ‘Carol, olha isso. Carol, olha aquilo’. Eu comecei a despertar pra muita coisa que até então eu não tinha despertado”. 

 

O futuro

            Há 128 anos os avós dos meus avós viviam como escravos. Essa frase pode definir bem um momento da minha conversa com Carol. A gente sentia a mesma dor ao pensar que alguém da nossa família tinha vivido as atrocidades que estudamos na escola e que relembramos em livros ou filmes. Nós ainda vivemos uma época de desigualdade. Ainda não encontrei uma pessoa negra que me afirmasse nunca ter sofrido preconceito, seja ela rica ou pobre. Como disse a capitã Lúcia Helena: “A questão é a cor da pele. É o maior órgão que a pessoa vê”.

        Carol sempre se deu bem com todo mundo, sempre foi muito comunicativa. Desde o colégio até agora na universidade. “Eu nunca sofri muito com preconceito”, avalia. Ela sempre estudou em colégio particular, suas amigas, até pouco tempo, eram todas brancas. “Eu acho que de algumas eu ainda sou a única amiga negra que elas têm”. Com a sua participação em movimentos negros, Carol tem feito novas amizades. E está feliz com isso. “É muito diferente a conversa. Eu não consigo ter um diálogo desse com minhas amigas que são brancas, não rola, não dá, porque elas não passam pelo que eu passo, elas não sentem o que eu sinto. O fato de você não compartilhar, você não viver aquela realidade, então aquilo dali é muito distante pra você. E agora, caramba, as minhas amigas eu posso abordar, posso conversar, isso e aquilo. Então a gente tá sempre interagindo, em contato, e eu acho massa”.

            Alguns minutos se passam e ela continua a refletir sobre a questão do preconceito. “Provavelmente já passei por grandes situações que pra mim, na minha cabeça, era normal, nem percebia que alguma pessoa tava agindo com má fé comigo”. Como eu disse, ainda não encontrei uma pessoa negra que me afirmasse nunca ter sofrido preconceito. Não depois de refletir um pouco mais. Dois casos marcaram a memória de Carol. Um na escola, quando dois alunos abriram espaço e disseram “abre que a neguinha vai passar”. “Eu nunca me esqueci”, conta, com uma voz que doeu em mim. O outro, nos primeiros períodos da universidade, quando um colega de classe disse ao vê-la se aproximar do grupo “Lá vem a senzala pra perto de mim”. “Eu não consegui reagir. Eu disse ‘deixe desse tipo de brincadeira que eu não gosto’, falei alguma coisa assim. E aquilo ficou na minha cabeça ‘Carai, velho, ele me chamou de senzala’”. São casos como esses que nos fazem entender que não, o Brasil não é um país sem preconceitos.

            Foi de uns tempos pra cá que Carol começou a sentir a necessidade de debater o racismo, de lutar pela igualdade. “Eu acho que esse ano foi o que eu mudei mais, minha maneira de pensar, de agir, tudinho. Foi quando eu comecei a perceber ‘Pô, não posso entrar na faculdade e sair do mesmo jeito’”. As redes sociais são um dos instrumentos que Carol usa para propagar sua voz. “Antes eu não divulgava tanto, se eu via alguma coisa só curtia e comentava, não chegava a compartilhar não. Só que agora eu vejo a necessidade que eu tenho de compartilhar, de falar, de me empoderar, de me posicionar”.

            O curso já está bem próximo de ser concluído e um pensamento que revoltaria qualquer profissional passa pela sua cabeça. “Algumas pessoas não vão querer ser atendidas por mim porque eu sou negra”. A fala de Carol imediatamente me remeteu ao caso de um padre negro que foi dispensado pela mãe da noiva. “Eu não gostaria que o senhor fizesse o casamento da minha filha, não vai ficar bem na foto. O senhor entende, né?”. Hoje, durante as aulas práticas na clínica da UFPE, alguns pacientes perguntam a Carol “Você é dentista mesmo?”. O futuro, reflete, pode ser similar. “Eu posso pegar um paciente que não vai querer ficar comigo, que vai achar que eu sou ASB, auxiliar de saúde bucal. Não tô menosprezando, mas vai pensar que eu sou auxiliar, não vai achar que eu sou dentista”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

            Diante desse conceito enraizado, que precisa ser desconstruído e combatido diariamente, uma palavra tem ganho força e representatividade: empoderamento. É isso que Carol tem feito cotidianamente. É isso que ela quer repassar ao demais. “O fato de eu assumir meu cabelo já era uma mudança que pra mim era só uma questão de estética, mas eu já tava mudando ali. Foi quando eu me vi realmente como uma mulher negra, meus traços negros, minha origem, tudinho. Foi quando eu me vi”. Foi assim também que ela começou a atentar para os papéis de cada um na sociedade. Papéis padronizados. “Pra esse empoderamento vir, primeiro, você tem que se reconhecer. Você se olhar no espelho e ver: eu sou uma mulher negra, eu faço parte de uma sociedade machista, preconceituosa, homofóbica, patriarcal. Acho que é a partir daí que a gente começa a reivindicar os direitos e os deveres da gente”.

            As redes sociais são um meio importante nessa construção. “O que eu acho massa, o que eu acho importante, é que eu vejo muito jovem se empoderando, denunciando e se impondo. Muito jovem não deixando mais passar aquilo batido, entendesse. Acontece alguma situação de racismo, na hora tá na internet. Eu acho que a rede social tá aí pra isso”. E, no que depender de Carol, o futuro nos trará pessoas ainda mais conscientes. “Eu não fui criada empoderada, é uma coisa que eu vou fazer totalmente diferente com a minha filha”, conta, mostrando o papel de parede do celular com a fotografia de uma menina que tem tudo para ser parecida com suas futuras filhas.

" Odonto é um curso elitista. É um curso de branco. Tem muita gente que tá aqui só pra manter o padrão. "

 

 

" Pra esse empoderamento vir, primeiro, você tem que se reconhecer. Eu sou uma mulher negra, eu faço parte de uma sociedade machista, preconceituosa, homofóbica, patriarcal."

 

Carolina Lemos, futura cirurgiã-dentista

 

" Algumas pessoas não vão querer ser atendidas por mim porque eu sou negra. "

 

 

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