top of page

Além de proteger e servir

             Cadeiras de madeira com o braço próprio para apoiar o caderno, quadro à frente, ar-condicionado fraco, fazendo com que os estudantes e o policial que acompanhava a apresentação se abanassem constantemente. A sala escolhida para abrigar o seminário não difere muito de qualquer – ou ao menos da maioria – escola pública do estado. O ambiente estava escuro, mas havia um motivo: durante a palestra, que foi das 10h30 ao meio-dia de uma quinta-feira quente, foram exibidos dois vídeos. O primeiro deles eu não conhecia, chama-se “Vista Minha Pele” e encheu a sala de aula logo nos 10 minutos iniciais do encontro, após a oficial perguntar aos adolescentes se eles já escutaram falar sobre o racismo. Algumas respostas: “é preconceito”, “é chamar de negro”. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

         

           O filme tem pouco mais de 26 minutos e apresenta personagens em papéis trocados ao que habitualmente ocorre na realidade: uma estudante branca e pobre, de aproximadamente 15 anos, é discriminada pelos colegas, todos negros e ricos. Ela mostra as dificuldades em casa e no colégio e deseja vencer o concurso de beleza da instituição, acontece que só meninas negras ganham o título de “Miss”. O filme conta, na fala de suas personagens, que as pessoas brancas têm menos oportunidades e sofrem mais preconceito devido ao contexto histórico da escravidão que os africanos impuseram sobre os povos europeus. Em certo momento, a protagonista sonha com uma sociedade mais igualitária e pede, na simbologia de uma frase, “Eu queria um mundo com pessoas iguais a mim apresentando programas de televisão”. Tudo ao contrário: o branco no papel do negro, o negro no papel do branco. O ideal era que não houvesse papéis.

Estamos na Escola Estadual Francisco de Assis, localizada no bairro de Água Fria, região popular da Zona Norte do Recife. Na plateia, adolescentes do 7º e 8º ano do Ensino Fundamental ouvem com atenção balanceada as explicações sobre racismo institucional. Ao final do vídeo, a palestrante quer saber as impressões dos estudantes e, em meio a um burburinho, palavras soltas: “legal”, “interessante”, “ótimo”. É hora de ela ser apesentada oficialmente, capitã Lúcia Helena, 31 anos, coordenadora do Grupo de Trabalho e Enfrentamento ao Racismo da Polícia Militar de Pernambuco. Cabelos curtos e crespos enfeitados com um diadema discreto, 1,78m de altura, brincos pequenos, pouca maquiagem, distintivos espalhados pela farda mostrando sua graduação militar, arma presa na cintura.

Dando sequência às atividades com os jovens, sempre com questionamentos que os instiguem a pensar a sociedade, ela fala sobre a história dos afrodescendentes e indaga: “O que a gente aprende na escola sobre os negros?”. A resposta: “A gente só aprende a história dos brancos. Sobre os negros, a gente só aprende a escravidão”. É inevitável concordar com essa afirmação. Lembro-me das aulas de história no Colégio da Polícia Militar de Pernambuco, frequentado em épocas não tão distintas por Lúcia Helena e por mim. Ela conclui o Ensino Médio em 2003, com o status de aluna-coronel, a aluna com as melhores notas do 3º ano. Na então 7ª série, eu terminaria o colegial dali quatro anos.

          Foram muitas aulas sobre navios negreiros, castigos e chibatas. Outras tantas sobre Lei do Ventre Livre, Sexagenário e Áurea. Mas poucas sobre a história real dos africanos que vinham obrigados para as terras ocidentais. Sua cultura, seus costumes, sua vida na terra matriz eram incógnitas só descobertas por pesquisas próprias. Como exemplifica a oficial: “A gente aprende sobre a mitologia grega, mas não somos apresentados aos deuses africanos”. É essa falta de informação, acredita Lúcia Helena, uma das principais responsáveis pela intolerância religiosa, presente também, ainda que inconsciente ou por repetição dos discursos vigentes, em estudantes que assistiam à palestra. Ao perguntar se eles conheciam os Orixás, a resposta saiu espontânea “Sangue de Cristo tem poder”, “É macumba”, “Cruz credo”. Para garantir a integridade dos seguidores das religiões de matriz africana, a PM tem policiado eventos de terreiros pernambucanos. Entre janeiro e setembro de 2015 foram 25 solicitações de templos religiosos pedindo proteção.

 

Como se não fosse um ambiente de mulher

            Quando não está ministrando palestras ou realizando outras ações externas, a capitã Lúcia Helena pode ser encontrada na Diretoria de Articulação Social e Direitos Humanos (DASDH), um dos departamentos localizados no Quartel do Comando Geral, no bairro do Derby, área Central do Recife. A sala é clara e ampla, talvez até maior que a sala de aula da Escola Francisco de Assis, e tem seis policiais trabalhando, três homens e três mulheres. Uma proporção ideal, mas diferente do real contingente da PMPE, que tem ao todo 2.258 mulheres, algo em torno de 10% do efetivo. Os dados comprovam que a polícia militar ainda é majoritariamente masculina, as mulheres, inclusive, só puderam ingressar na instituição, que completou 190 anos em 2015, em 1983. Em uma das paredes da DASDH está pregado um banner em homenagem ao trigésimo aniversário da polícia feminina, comemorado em 2013, tendo como slogan o nome do filme americano: “De repente 30...”.

            Sentada no seu birô, que fica quase encostado no centro da parede oposta a porta de entrada, permitindo a visão imediata de quem chega ou sai, Lúcia Helena relembra sua trajetória na PM e os motivos que a levaram a escolher a profissão, o que inclui o fato de vir de uma família de militares. “Meu pai era militar, o meu avô também, meus tios eram militares. Eu estudei 11 anos no Colégio da Polícia Militar e eu sempre gostei, me sentia bem com essa questão da disciplina, da hierarquia, do ambiente militar. E por vir de uma família muito humilde também, uma situação financeira muito difícil, eu achava que a polícia era uma oportunidade de eu ter meu emprego, meu dinheiro, de ter minha estabilidade”. E brinca: “Então, juntou a fome com a vontade de comer”.

            A simplicidade na fala, o riso e o carisma são percebidos nos primeiros minutos de conversa. São comprovados, aliás, já que no dia da palestra essas características já se faziam marcantes. Só que os estudantes também conheceram a autoridade da policial e a sua energia para conter as desatenções que por vezes surgiam. Uma batida de palmas, uma voz mais firme, um “presta atenção aqui” e os alunos estavam novamente conectados à palestrante.

            Lúcia Helena ingressou na PM após ser aprovada no Curso de Formação de Oficiais (CFO) da Polícia Militar de Pernambuco. Ela havia acabado de concluir o Ensino Médio e prestou concurso também para soldado da PM e dos Bombeiros, além de prestar vestibular para Universidade Federal de Pernambuco. Foi aprovada em 2º lugar na prova intelectual do CFO. Vieram as outras fases: os testes de saúde, os físicos e os psicológicos. Na última etapa da prova física, após passar pelos exercícios na barra, pelo abdominal, pelo salto em distância e pelo teste de velocidade na corrida dos 50 metros rasos, falhou no de resistência, a corrida dos 2.400 metros. Faltava menos de uma volta para completar a prova. “Acho que o fator psicológico também influenciou muito, mas a dor era muito forte, era muito forte, era muito forte”, diz, quase que revivendo o sofrimento da época. Foi aí então que ela procurou um advogado especialista na área e entrou na Justiça, conseguindo uma liminar para fazer o curso de formação. “Eu tinha sido 2º lugar no intelectual, nera?”. Foram três anos na Academia da Polícia Militar situada no município de Paudalho, a 48 km do Recife. “Três anos de semi-internato, ‘semi-infernato’”, brinca, aos risos. Nesse período, ela guardou as notas dos testes físicos realizados no curso: “Os testes físicos da Academia são muito pior, é muito mais difícil do que pra ingressar”.     

            Terminado o CFO, todos os integrantes da turma de Lúcia Helena foram promovidos a tenente após o estágio. “Menos, eu né?”, ri, sem ressentimento algum. “Eu fiquei como aspirante ainda um tempão até que houve aquela...”, o pronome indica que ela vai relatar o caso que a tornou conhecida não só em Pernambuco, mas em território nacional. Era o ano de 2008, Lúcia Helena fazia parte do Batalhão de Choque e trabalhava no jogo de futebol entre os clubes Náutico e Botafogo no estádio dos Aflitos, no Recife, quando entrou no campo e deu voz de prisão a um jogador do time carioca. Um policial que também trabalha na DASDH comentou o caso: “Jogador racista, safado. Respeita a polícia, respeita o povo”. No ano seguinte, recorda Lúcia Helena, houve a audiência do seu processo de promoção. Na ocasião, o desembargador relator do processo relembrou o caso e afirmou ter ficado lisonjeado por ver uma policial atuar daquela forma. Lúcia Helena foi promovida a segundo-tenente com base na teoria do fato consumado. “O Estado já tinha investido em mim todos aqueles anos de formação”. Em pouco tempo, foi promovida também a primeiro-tenente.         

            A mulher como policial militar já causa certa curiosidade em quem não está familiarizado com o ambiente, mas também desperta muita admiração, e Lúcia Helena, ao concluir o curso de formação de oficiais, escolheu atuar em um dos batalhões mais incisivos. “Eu fui uma das primeiras a escolher para onde eu queria ir, por conta da minha nota. Fui 03 (terceira melhor nota) também quando terminei o curso, aí eu escolhi ir para o Choque”, conta, comprovando que tanto para entrar no curso, quanto ao terminá-lo, figurou entre os melhores candidatos. Foram quase seis anos no Batalhão de Choque, saindo de lá em 2013, já promovida à capitã, para atuar exclusivamente na Diretoria de Articulação Social e Direitos Humanos, sendo responsável por coordenar o GT Racismo e a Patrulha Maria da Penha.

            Os direitos, o respeito e as condições de trabalho na polícia ainda não são igualitários entre homens e mulheres. “A mulher, assim como em todos os espaços, na polícia ela também ainda é muito discriminada. É como se a instituição fosse machista, como se não fosse um ambiente de mulher”, reflete, e faz questão de frisar: “A sociedade é machista, não é privilégio da polícia”. A falta de preparação da corporação pode ser percebida em alguns fatores como na ausência de alojamentos suficientes e no adiamento de promoções em caso de gravidez, quando a policial não pode participar dos cursos. “A polícia ainda não está preparada para receber as mulheres, ela ainda não se adequou como deveria. Já são mais de 30 anos, já deveria ter acontecido isso”.        

 

Foi a pessoa que cuidou de mim a vida toda

            Apesar dos problemas é fácil enxergar o orgulho da capitã por fazer parte da instituição militar. Isso é visível nos pequenos detalhes, como nos itens que enfeitam a estante atrás do seu birô. É na boneca vestida de policial do Choque. É na caneca decorada com emblema da PM. É na matéria de jornal emoldurada em um quadro. Ao lado desses objetos, dois porta-retratos: uma fotografia da sua formatura em psicologia e outra que evidencia o maior amor da vida de Lúcia Helena, sua mãe, Dona Carmen.  É possível ver nos olhos da oficial o carinho que invade e trasborda ao falar sobre a ligação que as une. É possível até ver os seus olhos marejar. “Ah, minha mãe é minha rainha, minha heroína, meu porto seguro. Foi a pessoa que cuidou de mim a vida toda”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

            Os pais de Lúcia Helena se separam quando ela ainda era um bebê de colo de quatro meses. Foi difícil para Dona Carmen cuidar dela sozinha. Com o rosto meio de lado, desviando o olhar entre o chão e o teto, lutando para conter a emoção, o desabafo: “Minha mãe foi uma verdadeira guerreira, uma pessoa que eu tenho muito que me orgulhar, agradecer e me espelhar. É uma pessoa muito cara pra mim, sabe?”. O único momento em que a brandura na voz se altera é para alertar sobre sua transformação caso alguém mexa com Dona Carmen. “Eu sempre digo às pessoas assim: faça alguma coisa comigo, mas não faça com a minha mãe não, porque se você fizer com a minha mãe, você vai me desconhecer, você vai olhar pra mim e vai dizer ‘o que é isso, Lúcia?’”.   

            Houve um episódio em que as duas levaram o fusquinha de Dona Carmen a uma capotaria e o dono do local soltou o pitbull, que foi na direção da senhora e a assustou. “Pronto, foi só o fato de ela ter se assustado com aquilo dali, já virei bicho lá dentro. Eu disse ‘prende esse cachorro agora’”. Mas essa revolta não significa que a capitã não goste de cachorros, pelo contrário, ao ser questionada se moram juntas apenas ela e a mãe, ela logo rebate com uma grande afeição e um pouco de brincadeira: “Eu, minha mãe e nossa cadela de raça indefinida”.      

            O convívio com o pai, já falecido, não foi muito intenso. Deixando transparecer um pouco de tristeza, ela fala sobre esse afastamento e sobre a sensação de ter sido abandonada, sentimento trabalhado durante as sessões de terapia. Com uma palavra rápida e talvez meio constrangida ela responde minha pergunta “Seu pai era branco ou negro?” “Branco!”. Mas o bom humor rapidamente retorna. “Às vezes eu tiro onda com mãinha 'Tu fosse casar com um branco pra ver se tua filha não nascia preta', ela se invoca comigo”.  E reflete: “Não adianta porque o gene negro é dominante. A maioria dos casais que é formado por negros e brancos, os filhos são negros”.

            Mesmo tendo sofrido com a ausência do pai, Lúcia Helena comprimiu todos os sentimentos em orgulho e agradecimento. “Em que pese todas as dificuldades hoje eu entendo que o que eu tenho que ter do meu pai é orgulho e agradecer a ele por tudo. Porque se não fosse ele, eu não estaria aqui, se não fosse ele, eu não teria nascido, se não fosse ele, não teria estudado no Colégio da Polícia, eu não seria policial”.

            A ascensão na carreira é o fruto do trabalho dedicado e exemplar da oficial. Eu não me surpreenderia se daqui alguns anos ouvisse falar na Major ou na Coronel Lúcia Helena. E acredito que nem seus colegas de farda. Em pouco mais de uma hora de conversa, foi possível perceber a harmonia entre aqueles que passavam pela Diretoria de Articulação Social. É lá que Lúcia Helena às vezes exerce a psicologia, auxiliando colegas que estão passando por algum problema. Ela cursou a faculdade após concluir o CFO e por influência da mãe, que insistia que a filha tivesse o ensino superior. A escolha do curso foi algo como uma epifania e contrariou certa unanimidade de policiais estudarem Direito. “Eu sou uma psicóloga nata”, conta, às gargalhadas, informando que nasceu no dia do psicólogo, 27 de agosto. “Um dia eu estava dirigindo voltando para casa e sabe aquele insight ‘Psicologia’. Aí, eu, 'poxa, psicologia, taí, é isso que eu vou fazer'”. E acrescenta: “A minha intenção de fazer psicologia, inclusive na primeira aula do curso eu falei isso, era aprender para ajudar na minha instituição. Esse era o meu objetivo, e ainda é, porque eu acho que a gente precisa de um olhar mais humano, sabe, para os nossos profissionais”.

            Esse olhar mais humano também está presente nas palestras com os jovens, em que ela também demonstra uma desenvoltura invejável. Durante a conversa com os alunos é possível notar os olhares desconfiados ao Lúcia Helena perguntar sobre o racismo, alguns pareciam com medo de serem questionados diretamente. Mas a capitã é democrática e deixa os alunos livres para falar apenas quando se sentirem à vontade. Aliás, boa parte dos estudantes que assistiam à palestra eram negros. Talvez o cenário fosse outro em alguma escola particular.

            A representatividade, o você se enxergar no outro, foi a marca daquele encontro. Para Lúcia Helena, a sociedade ainda se espanta ao ver pessoas negras ocupando importantes cargos.  “Essa fala mesmo de ‘Poxa, que legal ver uma mulher negra capitã da polícia’, já escutei várias vezes, como se fosse uma coisa extraordinária. Impressiona sim, impressiona sim as pessoas. Mas estamos nessa vida para impressionar, né? A gente não veio por acaso, a gente veio para abalar”, conclui às gargalhadas.

     

Por que ninguém dá nada por mim?

            A autoestima é outra marca registrada da capitã, mas nem sempre foi assim. Esse sentimento foi trabalhado, juntamente com os estudos que permitem entender quando se está diante de um caso de racismo, incluindo o institucional, que é o fracasso das instituições de prestaram um tratamento igualitário. Certo dia, em um restaurante, ela ouviu um colega de escola comentar “Tá vendo aquela mulher ali? Ninguém dá nada por ela, mas é capitã da polícia”. Aquela frase pesou. Pesou em Lúcia Helena e pesou em mim. O colega, também negro, talvez não tenha consciência da força daquelas palavras. “A nossa autoestima, a autoestima do negro, ela não é boa. E eu hoje combato muito isso até com os meus próprios familiares”.

            É o aprendizado e a mudança de pensamento que Lúcia Helena quer passar para as meninas que sofrem de baixa autoestima. “Eu diria ‘em terra de chapinha quem tem cacho é rainha’”, fala, balançando os cabelos e me lembrando do momento que ela disse essa mesma frase durante a palestra na Escola Francisco de Assis, levando os alunos a uma grande euforia. “A nossa beleza negra é uma beleza maravilhosa. Então, na realidade, todo esse racismo ele serve para tentar não demonstrar, ou não aceitar, ou não assumir, que nós somos belos”.

            Ainda adolescente, Lúcia Helena passou por uma situação discriminatória no time de basquete da escola, o que a levou a sair da equipe. Hoje, ela não se sente confortável para comentar o caso, mas acha importante que as pessoas entendam o racismo e o combatam, assim como ela aprendeu a fazer. Foi assim quando lhe cobraram o pagamento de uma taxa antecipada em um restaurante, e não o fizeram com os demais colegas à mesa. Foi assim quando, por duas vezes, e em lugares distintos, o garçom interrompeu seu atendimento para anotar o pedido da mesa ao lado. Foi assim ao questionar uma pessoa que indagou se a fotografia de sua viagem à Europa era montagem. “Porque como às vezes é inconsciente, a pessoa tem que se aperceber disso e, se ela não percebe, a gente tem que dizer. É dessa forma que a gente combate o racismo. A gente não deve aceitar esse tipo de tratamento, a gente tem que ser bem tratado como todas as outras pessoas são”.   

 

De negro só tinha a gente

            As viagens são um dos hobbies de Lúcia Helena e Dona Carmen, que já conheceram vários estados do Brasil, entre eles Rio Grande do Norte, Alagoas, São Paulo e Rio de Janeiro. “Não tem melhor companhia pra viagem do que minha mãe. Eu digo ‘Mãinha, a senhora é minha companheira de aventura’, ela começa a rir”. A lembrança das viagens traz consigo os olhares incrédulos. Como quando foram para Ouro Preto (MG) e frequentaram um bufê cuja entrada custava R$ 95 reais por pessoa. Acharam um pouco caro mas acabaram entrando, afinal, eram férias. “Quando a gente tem a capacidade de estar em determinados ambientes, a gente acaba sendo mais discriminado. Porque são ambientes majoritariamente brancos, não vai ter negro ali. Então, assim é que a gente é visto, é apontado”.

            Nos trens europeus, o espanto também se fez presente. Foi na feição de surpresa dos fiscais, que transparecia algo como “Essa mulher aqui, visitando a Europa, de férias?”. “A gente percebe a forma como a pessoa olha o documento, a foto, a careta que ela faz, de questionamento ‘pô, será?’”. A curiosidade velada é sentida no dia-a-dia, sempre que frequenta um local tradicionalmente de elite. “Como a gente frequenta às vezes ambientes mais aristocráticos, digamos assim, então a minoria é negra. Quando tem negro é o músico, é o garçom, mas o público mesmo é quase zero. Então é como se fosse não convencional ver a gente ali. Causa uma estranheza”.  

            A viagem para a Europa foi um presente para Dona Carmen. “A gente já sofreu muito na vida, então sempre que tem uma oportunidade eu gosto de fazer minha mãe curtir um pouco. Essa viagem mesmo eu só fiz porque um dos sonhos dela era conhecer França e Itália. Se fosse depender só de mim, eu não teria ido”. As duas também fazem juntas muitas outras atividades, como aulas de canto e de teatro. “Não tem companhia melhor pra estar, pra viajar, pra qualquer coisa, do que a minha mãe. Minha mãe é maravilhosa demais”. Nos finais de ano costumam encenar um espetáculo junto com o grupo Viva Voz no Teatro Hermilo Borba Filho, no centro do Recife. Lúcia Helena ainda toca violão, faz aulas de ginástica funcional, é instrutora da Secretaria de Defesa Social, terminou o curso de libras e o inglês e gosta de estudar. A mãe toca violão e flauta, faz curso de libras e de inglês e terminou o espanhol. Fica fácil descobrir a origem de tanta disposição. 

            Na despedida da nossa conversa um abraço forte, meio como uma troca de energia. Saio do quartel com um pouco do empoderamento dela em mim, com uma vontade incontrolável de beijar minha mãe e relembrando a frase que fez Lúcia Helena arrancar sorrisos e aplausos dos quase 50 alunos da Escola Francisco de Assis que assistiam à palestra: “Sou uma mulher negra, linda e bem-sucedida, graças a Deus”.

" Eu sou uma mulher negra, linda e bem-sucedida, graças a Deus"

 

Lúcia Helena Salgueiro, capitã da PMPE

bottom of page