top of page

A engenharia divina

Recentemente eu li um livro que reunia os textos da fase de jornalista de Clarice Lispector. Entre os publicados na imprensa, fosse jornal ou revista, estavam crônicas, contos, colunas femininas e entrevistas. Nesse último gênero duas características me chamaram a atenção. A primeira: a maneira de Clarice escrever, sempre se colocando no texto e transformando a narrativa numa conversa em que suas próprias opiniões e reflexões estão presentes, caminhando lado a lado com o pensamento dos entrevistados. Com a humildade de uma jornalista em início de carreira, atrevo-me a dizer que tenho desenvolvido um estilo semelhante ao clariciano. É difícil falar de um assunto que lhe toca sem mostrar em momento algum suas impressões a respeito. A segunda: o local onde eram realizadas as entrevistas.

Clarice entrevistou nomes conhecidos de todos nós. Nelson Rodrigues, Tom Jobim, Sara Kubitschek, Maísa, Elke Maravilha, Alzira Vargas, Darcy Ribeiro e Rubem Braga estão entre eles. Alguns eram seus amigos, outros acabara de conhecer. Dois deles concederam entrevista no mesmo lugar: Tom Jobim e Elke Maravilha. Ambos foram à casa de Clarice, encontrá-la. Enquanto lia os textos me pegava refletindo: Clarice fazia as entrevistas em casa, as pessoas iam até ela. Era, no mínimo, uma prova do respeito que as pessoas lhe nutriam.

Enquanto estudante de Jornalismo, entrevistei muita gente. Aprendi que devemos ir aonde a fonte está. Muitas vezes, o próprio local ajuda a compor a matéria. Quando entrei em contato com as mulheres que integram esta série de perfis, sugeri os locais para a entrevista. A capitã Lúcia Helena e a procuradora Bernadete me receberam nos seus locais de trabalho. Carolina Lemos, estudante de Odontologia, encontrou-se comigo na universidade. Aposentada, a médica Laurinete preferiu um ambiente de lazer. A personagem deste texto é a engenheira química Gleyciane Correia, 28 anos. Nós nos encontramos na minha casa.

 

Direitos dos homens, direitos de Deus

            O relógio marcava aproximadamente 18 horas quando Gleyciane chegou naquele fim de tarde de terça-feira. Estava dentro da margem prevista já que havia informado que passaria entre 17h e 18h. É pontual. Foi ela quem sugeriu que a entrevista acontecesse aqui. A minha primeira opção era encontrá-la na Petroquímica, em Suape, onde trabalha. Seriam, de ônibus, mais ou menos duas horas de deslocamento.

            O horário de trabalho da engenheira não é nada comercial, trabalha por turnos. Às vezes pega às 6h ou às 12h ou às 18h ou à meia-noite. No dia da nossa entrevista, por exemplo, saiu de casa às 4 horas da manhã. Tem dia que chega às 2h da madrugada em casa. “O meu turno é um turno complicado. Eu trabalho 6 horas por dia, geralmente cindo dias na semana, com uma folga. Cada dia é um horário diferente, só no final de semana é que são horários iguais”. É difícil folgar sábado e domingo no mesmo final de semana. Isso acontece a cada 35 dias. A empresa oferece o transporte, que busca cada um dos funcionários. “A van passa na residência de cada pessoa. Eles pegam na porta de casa e deixam na porta de casa. Todo dia, todos os horários”.

          Gleyciane é uma das pessoas mais religiosas que já encontrei. Quando católica, era daquelas que não recebia a Hóstia caso estivesse sem se confessar. Evangélica há quatro anos, tem pensamentos definidos sobre assuntos que costumam gerar polêmica. Aprova, por exemplo, o casamento civil entre casais homossexuais, mas não o religioso. “Da porta da igreja pra dentro você tem que seguir as leis de Deus. E da porta da igreja pra fora, a lei dos homens”.

          Também não concorda com a presença de pastores na política. “Porque eu acredito que o poder corrompe, por mais que ele vá bem intencionado. Porque a Justiça que a gente está lidando ali, os direitos que a gente tá lidando ali, são os direitos daqui da Terra, são dos homens, e não os de Deus. Então é complicado você querer impor os direitos, os deveres, de Deus a todos os homens da Terra. Porque nem todos acreditam em Deus”.

            Durante o curso de jornalismo da UFPE não foram poucas as disciplinas em que abordamos o tema “identidade de gênero”. Fizemos entrevistas, provas, matérias, programa especial em parceria com uma rede de televisão local. No início, eram comuns as dúvidas: “Devemos tratar a pessoa transgênera ou transexual no masculino ou no feminino?”, por exemplo. Eu também percebi essa confusão quando Gleyciane lembrou o amigo trans. “Tenho uma amiga que ela é ateia, ateu na realidade, que, no caso, ela é uma menina que está passando por transição. Ela vai se tornar homem. Ela nasceu mulher e vai adaptar seu corpo a homem, que a cabeça dela é de homem, sempre foi e eu sempre desconfiei disso”. Eles são amigos há 12 anos e já viveram várias fases juntos. “Ele era evangélico no início, depois desistiu da religião totalmente, hoje é ateu, e eu hoje sou evangélica, que é um segmento muito mais rígido. E aí eu converso muito com ele, dizendo que eu não concordo, mas respeito, porque é uma decisão dele, é uma questão dele. Se todo mundo pensasse dessa forma, o mundo seria um pouquinho melhor”. Ela tem razão.

 

Eu prefiro não enxergar

Ou

É mais difícil por ser mulher

 

            “Eu tinha 14 ou 15 anos e aí eu gostei muita da matéria Química. Gostei na 8ª série, continuei gostando no 1º ano, comecei a pesquisar sobre profissões relacionadas à química e a Engenharia me deu um leque de opções maior”. Foi assim, ainda adolescente, por vontade própria e sem influência da família, que Gleyciane decidiu o que queria ser da vida.

            Foram cinco anos cursando Engenharia Química na Universidade Federal de Pernambuco. Ao mesmo tempo fazia o curso técnico no CEFET, hoje IFPE. Na época, não tão distante assim, as engenharias ainda não eram unificadas. Os estudantes não tinham os dois semestres de grade curricular comum antes de optar por alguma área. “Eu entrei em 2007, antes de unificar. Eu já sabia o que eu queria mesmo e eu já entrei no que eu queria”.

          A turma tinha cerca de 45 alunos. Quando pergunto se havia muitos alunos negros, ela logo reponde: “Na minha turma não”. Faz uma pausa, meio que tentando puxar da memória os colegas que recordava. “Na minha turma, negros, rapaz”, sorri meio sem graça com a dificuldade, “puxando assim, negros, três pessoas, contando comigo”.

            Nunca sofreu, acredita, discriminação na universidade por causa da cor. O mais comum era ouvir piadinhas por ser mulher num ambiente ainda masculinizado, apesar de a Engenharia Química ser umas das mais democráticas no quesito gênero. “Mas eu acredito que vai muito da vontade da pessoa e dos gostos, né? Se eu gostasse de Engenharia Elétrica eu faria Elétrica”, brinca. Ela não desistiria de algo porque se convencionou que é um trabalho de homem ou mulher.

            O preconceito extrapola os muros da universidade, chegando ao ambiente profissional. “Na área que eu tô, indústria, tem sim. Por ser mulher muito mais do que por ser negra. Na indústria, tem muito disso, tá entendendo? De ser um universo muito masculino e de impor limitações às mulheres que os homens não têm”. As mulheres também precisam se impor mais para alcançar uma promoção. E, quando isso acontece, as famosas piadinhas também são comuns. “Porque é muito mais fácil quando se é homem. Isso é fato. E às vezes, quando conquista a promoção, que o chefe é homem, é pior ainda, né, por causa dos comentários. ‘Ah, porque é mulher’. ‘Ah, porque é muito melhor trabalhar com você do que com esse marmanjo’. Coisas desse tipo. É normal ouvir isso aí”. Ela logo se corrige: “Normal não, né, comum. Porque normal não deveria ser”.

            Formada há dois anos, ela ainda cursava a faculdade e o técnico quando passou no concurso público para a Petroquímica. A revelação de que não estudou para a prova deixaria qualquer concurseiro louco de inveja. Foi uma amiga que indicou “Olha, vai ter concurso da Petrobras”. Ela decidiu fazer. “Fiquei em 88 no cadastro, fiquei muito distante do número de vagas, eu não esperava ser chamada. Só que chamaram muitas pessoas, muitas mesmo”. Quatro meses depois da divulgação do resultado, Gleyciane foi convocada. No dia da nossa entrevista, ela completava quatro anos de Petroquímica. Ano passado foi promovida de Operadora 1 a Operadora 2.

                   O noivo, Mizael, 28, trabalha na mesma empresa, mas em setor diferente do dela. “Porque hoje tudo que a gente tá adquirindo no trabalho é pra casamento, pra casa, pra, enfim, pra pagar o que a gente quer construir. E aí depois a gente vai tá mais livre, mais tranquilo, pra poder se dedicar aos estudos”. O casamento acontece em outubro de 2016, dois meses depois de completarem 4 anos de relacionamento. “Tá tudo caminho andado, graças a Deus. Só falta pagar”, comenta aos risos. O plano era ter o primeiro filho logo depois da união, mas o projeto mudou. Gleyciane pretende fazer especialização ou mestrado em Segurança do Trabalho, além de cursar o tecnólogo de Gestão ambiental. O objetivo é tornar-se auditora de ISO, certificação internacional de qualidade, segurança e meio ambiente. “Só que pra isso é preciso muito investimento, então eu preciso me especializar primeiro, porque o curso é caro.” Ela também deve retornar ao curso de inglês.

            Parte do enxoval do casamento está sendo feito pela engenheira. “Eu gosto muito de costurar, gosto de bordar, gosto de fazer cartonagem. E têm bordados que são muito caros. Dá trabalho pra fazer, eu não tô desvalorizando a questão do profissional, até porque eu quero ser no futuro, mas é muito caro assim. Aí, como eu sei fazer, por que eu não faço?”, indaga. Quando se aposentar, ela quer abrir uma empresa de artesanato voltada pra itens de cama, mesa e banho. Aprendeu a bordar aos sete anos de idade, no colégio, para confeccionar um presente de Dia das Mães. Desde os 14 anos, quando o pai faleceu, que moram juntas apenas ela e a mãe, Dona Lourdes. Não podia ser diferente, há muito companheirismo. “É uma mãe maravilhosa, não tem nem o que falar. Eu queria ter um pouquinho da caridade que ela tem, um pouquinho da paciência que ela tem. Se eu tivesse só esse pouquinho, tava tudo perfeito”.

            Foi com ela que Gleyciane aprendeu que todos devem reclamar por seus direitos. “O que eu acho importante é você não se calar e fingir que as coisas não existem quando você sofre uma discriminação. Eu acho que cada um deve ter a sua própria consciência de buscar seus direitos quando se sentir ofendido e fazer valer aquilo”. Apesar disso, admite, procura não enxergar o racismo. “Eu acho que é uma dificuldade que você vai colocar a mais na sua trajetória de vida, sabe? Se você ficar colocando toda a culpa na sua cor… Têm coisas que eu prefiro não enxergar, a não ser que sejam muito gritantes, entendeu, e que realmente venham a me ferir, mas eu nunca me preocupei com isso”.

" O que eu acho importante é você não se calar e fingir que as coisas não existem quando você sofre uma discriminação. "

 

Gleyciane Correia, Engenheira Química

bottom of page